A REDESCOBERTA DA LITERATURA INDIANA – por Tirthankar Chanda (categoria: Artigos)

Postado por Rita de Cássia ligado jan 12, 2016 em Artigos / Crônicas | 0 Comentários

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A REDESCOBERTA DA LITERATURA INDIANA


Cada vez mais conhecidos no Ocidente, os escritores da Índia contemporânea fazem parte de uma tradição literária milenar, pautada pela crítica social, o erotismo e a transgressão


por Tirthankar Chanda


Em Shakuntala1, a principal peça do grande poeta dramático da Índia clássica, Kalidasa (século IV), o caminho do rei Dushyanta cruza com o da filha de um eremita durante uma caçada. A paixão é recíproca. Casam-se em segredo, mas o rei vai embora depois da noite de núpcias. Preso aos afazeres do reino, ele esquece sua amada, que o aguarda. O drama ameaça eclodir. Mas como não existe a tragédia no teatro indiano, o rei reencontra sua memória e volta para a bela Sakuntala. Essa história, que entusiasmou a intelligentsia ocidental em sua primeira tradução para o inglês no século XVIII, é um bom símbolo das complexas relações de amor e esquecimento que o Ocidente mantém há muito tempo com as literaturas indianas.
Hoje, o período é propício à aproximação de imaginários, como o atesta a extraordinária simpatia de que usufruem os escritores indianos de língua inglesa. Contudo, os indianos escrevem em quase vinte línguas, algumas delas com tradições milenares. Essas obras, em hindi, bengali, tâmil, sânscrito ou qualquer uma das outras catorze línguas oficiais do país, merecem ser conhecidas por sua riqueza estética, imaginativa ou filosófica. Inicialmente de natureza religiosa, a literatura indiana cedo mostrou o seu vigor: dos Vedas (3.500 a.C.) ao Ramayana2 e ao Mahabharata3 (séculos IV e V d.C.), sem esquecer Kathasaritsagara (século IX) ou os Bhakti (veja o quadro).
A moderna corrente das letras indianas nasceu no século XIX, graças ao contato com a Europa, seus pensadores e seus livros. Seus traços podem ser encontrados, em primeiro lugar, na literatura bengalesa, cujos autores foram expostos muito cedo à influência ocidental. Fundada em 1690 por um administrador da East India Company, e depois capital da Índia Britânica até 1912, Calcutá, no coração de Bengala, tornou-se o centro nevrálgico da vida intelectual indiana. Isso ocorreu em parte devido à descoberta pelos especialistas europeus dos inegáveis tesouros da literatura clássica indiana, em língua sânscrita. Mas também devido à criação dos primeiros estabelecimentos universitários: o Fort William College, em 1800, e o Hindu College, em 1817. Os jovens bengaleses formaram uma nova elite, que renovou a literatura, injetou-lhe novas idéias e importou formas como a ode, o soneto, o verso livre e, principalmente, o romance e a novela.

Novela e contestação

Sob impulso do escritor Bankim Chandra Chatterji, a ficção romanesca iria se enraizar. Autor de 14 romances, Bankim tratou de temas nacionalistas, intrigas românticas e enredos históricos, à maneira de Walter Scott. Muito popular em Bengala, assim como em outras regiões do país, onde suas obras foram traduzidas rapidamente, ele é unanimemente considerado o “pai do romance indiano”. No final do século XIX, Bengala já possuía uma literatura de primeira linha, com seus romancistas, novelistas e poetas. Eles domesticaram as formas ocidentais e deram o suporte eloqüente à efervescência social e intelectual que vivenciaram, enquanto o país se conectava com as forças da modernidade. Laureada com o Prêmio Nobel de Literatura em 1913, a obra multidimensional de Rabindranath Tagore situa-se na confluência entre a Índia e o Ocidente, entre o espiritual e o secular. Tagore é a expressão emblemática dessa empreitada de renovação intelectual chamada “renascimento bengalês”.

Essa corrente modernista propagou-se rapidamente por outros centros culturais e intelectuais, constituindo um estímulo decisivo à criação literária nas grandes línguas regionais indianas. Os primeiros romances em hindi, tâmil, urdu, telugu, gujerati e outros idiomas vernáculos datam da segunda metade do século XIX. A novela conheceu um destino extraordinário em todos eles. Sob influência de Tagore, que a tomou emprestada do francês e a popularizou em Bengala, os escritores indianos se apoderaram desta forma de narração breve antes mesmo que o gênero se impusesse na Inglaterra. Opondo-se aos sopros longos do discurso indiano, eles adaptaram a novela às urgências da reforma social e da resistência nacional contra o colonizador. Estas foram as duas principais fontes de inspiração durante a primeira metade do século XX.

No entanto, serão os escritores da escola progressista, como Premchand (de língua hindi), Manto (de língua urdu) ou Ismat Chutghai (de língua urdu), que dominarão a cena literária até a independência, em 1947. Com temas como a miséria social e a opressão das mulheres, a novela atingiu um pico de perfeição e de expressividade nunca mais visto.

Depois da independência, as literaturas das principais línguas vernáculas conheceram um desenvolvimento que revitalizou todos os gêneros. A poesia bengalesa foi modernizada e urbanizada, distanciando-se do idealismo romântico e do culto do belo que caracterizavam a poesia de Tagore e de seus herdeiros imediatos, como Jibanananda Das ou Sukanto Bhattacharya. Sob a pena de poetas às vezes reunidos em círculos4, ela se tornou mais popular, transgressora, ousada e grosseira -– sem dúvida para estar em maior harmonia com as ruas, sua principal fonte de inspiração. No sul, correntemente publicada pelos jornais, a novela se impôs como a forma de maior apelo popular.

Rebeldia individual

As grandes figuras dessas literaturas vernáculas pós-independência são Mahasweta Devi, Nirmal Verma, U. R. Ananthamurthy e O.V. Vijayan5. Escritores resolutadamente individualistas, nos quais a sensibilidade pessoal dá o tom sobre as escolhas estéticas da comunidade.

Paralelamente, vemos um formidável movimento de democratização e de “desburguesamento”, com a chegada das mulheres e dos autores dalits (oprimidos), termo pelo qual os escritores da casta inferior, ou “intocável”, gostam de se designar. A subversão entra na literatura.

“Nasci quando o sol enfraqueceu / E lentamente se apagou / No abraço da noite / Nasci numa viela / Num trapo velho / Cresci como alguém com um parafuso a menos / Comi fezes e cresci. / Me dá cinco centavos, me dá cinco centavos / E pegue cinco palavrões em troca / Estou a caminho do santuário”, escreveu o grande poeta Namdeo Dhasal, resumindo em poucas palavras toda a opressão sofrida por sua comunidade.

Representando 24% da população, os “intocáveis” estão na base da estrutura de castas que vigora na Índia desde a Antigüidade. A poesia dalit nasceu de seu sofrimento e das lutas obstinadas de personalidades como mahatma Jyotiba Phule ou Bhimnao Ramji Ambedkar6 para conscientizar essas populações. Ela emergiu nos anos 1960, no estado de Maharashtra. Fala da humilhação cotidiana e clama por transformações. “Mesmo o sol deverá mudar”, escreveu Arjun Dangle.

Para esses autores, escrever não é apenas uma prática estética, mas também um ato político. Seu objetivo: derrotar a ordem hindu pela força do verbo. Inspirados na rebelião dos poetas negros americanos da Harlem Renaissance, fundam em 1973 o movimento Panteras Dalits. Aliam a prática poética a um ativismo político radical. Fundador desse movimento, Dhasal conhece a notoriedade com sua primeira coletânea de poemas, intitulada Golpitha. Seus poemas chocam o establishment literário pela crueza da linguagem e pelas evocações ousadas, onde se misturam a sexualidade, o desprezível e a revolta. Naipaul, que reencontra esse poeta rebelde nos anos 1980, pinta com admiração um retrato do personagem em sua narrativa de viagem Índia, um milhão de revoltas: “A grande originalidade de Dhasal está em ter escrito num estilo natural, utilizando as palavras e as expressões que serviam unicamente aos dalits (…). Seu primeiro livro de poemas foi escrito, especificamente, no idioma dos bairros de prostituição de Mumbai”.
Sexo e obscenidade

As narrativas autobiográficas marcaram igualmente as letras dalits. Minha vida de intocável, de Daya Pawar, e Upra, de Lakshman Mane, são as obras-primas do gênero, marcadas tanto pela economia e eficácia da escrita quanto pelo valor testemunhal. São essas narrativas de vida que melhor dão conta do absurdo e do desumano das tradições e crenças.

Hoje, pode-se falar de um corpus realmente nacional da literatura dalit, com a entrada em cena dos escritores de língua tâmil, gujerati ou punjabi. Segundo Bama, a grande voz da literatura tâmil, autor do romance autobiográfico Sangati (A assembléia)7, “a literatura dalit é a única verdadeira literatura de libertação da Índia”.
Menos combativa, mas também subversiva, a corrente dos Digambara Kavulu (Poetas Nus) – na qual se destaca a poesia erótica de língua telugu, rica em imagens sexuais e vocábulos obscenos – abalou intensamente, na virada dos anos 1970, o elitismo da Índia profunda. Os poetas digambara eram tão provocativos que deixavam a promoção de suas primeiras obras a cargo das prostitutas, puxadores de riquixá e lavadores de pratos de restaurantes de beira de estrada. A elite brâmane, obviamente, ainda não se recuperou disso.

A anglofonia e a Índia profunda

Já a literatura em língua inglesa alcançou, desde alguns anos, uma visibilidade da qual não se beneficiaram outras literaturas indianas. Fruto de cerca de duzentos anos de colonização britânica, a anglofonia indiana vive hoje uma fase esplêndida, graças à fecundidade e ao talento de romancistas como Salman Rushdie, Tarun Tejpal ou Arundhati Roy, para citar apenas os nomes mais midiatizados. Essa geração de escritores – chamada de “filhos da meia-noite”, em referência ao título de um romance de Rushdie – mostra como o inglês, longe de ser o vestígio de um passado de subjugação, tornou-se a ferramenta privilegiada para explorar a realidade contemporânea indiana em toda a sua complexidade.
Ansiosa por consolidar sua dominação do país, por meio da formação de uma elite anglófona, suscetível de agir como intermediária junto às massas indianas, a administração britânica desejou constituir, desde o século XIX, o que o historiador e poeta Thomas Babington Macaulay chamou de “uma classe de indivíduos, indianos pelo sangue e pela cor da pele, mas ingleses por seus gostos, suas opiniões, sua moral e sua capacidade intelectual”8. Em 1835, fez votar uma lei impondo o estudo do inglês nos ensinos secundário e superior.

O primeiro romance indiano em inglês data de 1854. Mas o gênero conheceu seu verdadeiro desenvolvimento a partir dos anos 1930, com a geração de R. K. Narayan, Mulk Raj Anand e Raja Rao. Esses pioneiros fizeram história, porque foram os primeiros a compreender que o uso do inglês não era natural, e que era preciso escrever tendo em mente o status problemático desta língua na India. No prefácio de seu romance Kanthapura9, de 1938, cuja mensagem se mantém atual, Rao escreveu: “Nós somos condenados a exprimir esta alma, que é a nossa, com palavras vindas de fora. É difícil dar-se conta das nuances de nosso pensamento e dos silêncios que ocupam o processo de reflexão devido a essa incapacidade que sentimos de nos exprimir em uma língua estrangeira”.

Mas o inglês é, de fato, uma língua estrangeira para os indianos? Para Salman Rushdie e seus colegas, que por volta dos anos 1980 tomaram de assalto a passiva cena anglófona indiana, a resposta é evidentemente negativa. Vindos da elite, praticamente todos eles estudaram em escolas nas quais o inglês era a língua principal e desfrutaram do ambiente plurilingüístico de que fala o escritor U. R. Ananthamurthy: “Seja em que parte da Índia estivermos, vivemos numa ambivalência de línguas e influências. Falar uma língua em casa, outra na rua e uma terceira no trabalho parece algo bastante habitual e natural”. Salman Rushdie renovou profundamente a literatura anglo-indiana ao explorar com brilhantismo, em Os filhos da meia-noite, esse “ambiente de línguas”.

Densidade e originalidade

Na primeira leva de escritores que foram revelados em seguida a Rushdie, devemos citar Amitav Ghosh, Shashi Tharur, Vikram Seth, Rohinton Mistry, Upamanyu Chatterji, Amit Chaudhuri, Bharati Mukherji, Shauna Singh Baldwin, Githa Hariharan. Estando a maioria estabelecida no exterior, esses autores exploraram a Índia e seus abismos por meio da nostalgia ou da paródia. Recriaram, para citar Rushdie, “pátrias imaginárias”, produzidas pela distância e o esquecimento. Em 1997, Arundhati Roy publica O Deus das pequenas coisas10, que é agraciado com o Booker Prize e torna-se um grande sucesso nacional e internacional. A obra marca a entrada em cena da segunda leva de escritores anglófonos, a maior parte dos quais vive na Índia. Estão entre eles Tarun Tejpal, Rana Dasgupta, Indrajit Hazra, Ruchir Joshi, Radhika Jha e Raj Kamal Jha, em Nova Délhi; Anita Nair e Lavanya Shankaran em Bangalore; Allan Sealy, em Dehra Dun. O exílio não coloriu a percepção de sua temática e, com freqüência, mostram-se mais lúcidos que seus predecessores. No entanto, suas afiliações literárias e estéticas não são menos cosmopolitas, como comprova o sutil romance-conto de Rana Dasgupta, Tóquio: vôo anulado, na melhor tradição do Decamerão, de Boccaccio (1348), e dos Canterbury Tales, de Chaucer (século XIV).

Em seu último romance, O jardim das delícias terrestres11, Indrajit Hazra explora, por sua vez, as complexas relações da escrita e da mentira, por meio de uma fantasmagoria que faz o leitor viajar entre uma Calcutá inesperada e surreal e uma Praga fria e descarnada. Enfim, Fireproof12, de Raj Kamal Jha, que tinha escrito há alguns anos um romance intimista de grande intensidade, retoma, numa história estruturada com inteligência e alocada em diversos níveis, a série de pogroms antimuçulmanos que se desencadeou em 2002 na Índia, sob o olhar cúmplice dos poderes da época. É um romance forte, catártico, que se apóia sobre a imagem central de um feto desmembrado. Convida o leitor a descer às profundezas de uma memória coletiva desesperadora, e a se perguntar acerca de nossa precária humanidade e da barbárie que ameaça a civilização.

Este questionamento crítico lancinante sobre as misérias sociais, que os jovens anglófonos parecem hoje expressar, é sem dúvida um dos elementos que os liga ao corpus literário vasto e milenar da Índia. O engajamento social é fio que o conduz.
Tirthankar Chanda é professor de literaturas pós-coloniais da Universidade de Paris – VIII e do Instituto Nacional de Línguas e Civilizações Orientais, de Paris, e jornalista da Radio France Internationale e da revista Jeune Afrique.

1 Recognition of Shakuntala, de Kalidasa, tradução em inglês, Oxford World’s Classics.
2 Ramayana, atribuído a Valmiki, tradução em inglês, Penguin Books.
3 Mahabharata, atribuído a Vyasa, tradução em português, Madras Editora.
4 Por exemplo, o círculo criado em torno da revista Krittivas, em 1953, que reunia a nova geração de poetas, e que foi contestado, nos anos 1970, pelos modernistas do grupo Hungry (Famintos).
5 Ler “Réalisme magique au Kerala”, de Shashi D. Chintamani, em Le Monde Diplomatique, edição francesa, outubro de 2004.
6 O primeiro (1827-1890) foi um brâmane militante que se opôs ao sistema de castas; o segundo (1891-1956) foi um advogado dalit que se tornou o pai da Constituição indiana depois da independência.
7 Édition de l’Aube, 2002.
8 Minute on English Education, 1835.
9 Kanthapura, de Raja Rao, Ed. WW Norton.
10 Editado no Brasil pela Companhia das Letras em 1998.
11 The garden of earthly delightsEd. Phaidon.
12 Ed. Picador, Londres, 2007..

08 de Agosto de 2007

Palavras chave: Índia, livros, literatura

Fonte: Reprodução: www.diplomatique.org.br

 


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