O Beijo
Por Rita de Cássia Amorim Andrade
Há muito anos, vivia na cidade de Simplício Mendes uma menina pálida, magra, cujos cabelos avermelhados davam para suprir duas ou três cabeças. Era uma mocinha inocente dos desmandos amorosos, mas que lhe já despertavam certa curiosidade; não fosse a mãe atenta, visto que costumava colocar peitos e barrigas de cera de abelhas nas bonecas de celulóide, provavelmente não teria se mortificado com o ledo engano do beijo.
Certo entardecer, ia ela andando calmamente pelo aclive da rua Dr. Nelson Fialho, em direção à Praça da Independência (atual Praça Isaías Coelho), na calçada lateral que se estendia por todo o quarteirão da casa de esquina do seu padrinho, primo legítimo do seu pai. De repente, deparou-se com um fato inusitado que lhe chamou a atenção. Tratava-se de um casal: ele, um motorista e proprietário de caminhão, certo moço que vez ou outra aparecia na cidade por conta de travessia necessária, e que adquirira o respeito da sociedade “de primeira” (naquele tempo as classes sociais eram classificadas pelos numerais ordinais – o primeiro correspondia a mais alta). A moça ou pecadora, uma jovem não tão jovem, já no ponto de casar, pertencia a uma família de certa condição financeira.
Estava o casal, ela recostada no muro do casarão, ele recostado nela. Curiosa do amor, a garota escondeu-se atrás de um poste para espioná-los. Pasma ficou ao verificar o par amoroso a se esfregar boca a boca; entre os dois corpos não dava para passar nem pensamento. Mas o que intrigou a menina foi o tal “beijo”. Aflita, perdeu o interesse de ir passear na praça, retornou a casa e, a partir daquele instante, não teve mais sossego, estava crente que daquele beijo sairia uma gravidez. – Era os beijos que faziam as crianças crescerem na barriga das mães! – pensou a pobre menina.
Para desfazer qualquer dúvida, resolveu confidenciar o acontecido à melhor amiga, uma garota da sua idade, nascida gêmea, cuja irmã morava com os avôs. Pensou, repensou, era-lhe muito difícil falar mal de alguém. Mesmo porque só às mulheres casadas seria permitida a maternidade.
Cheia de escrúpulos, remoeu por muitos dias a decisão da confidência, afinal, existia o problema das unhas. Sim, porque a sua mãe sempre lhe advertira a respeito daquelas pintinhas brancas nas unhas que eram sinal de alguma mentira contada. Ela já sofria com essa história das unhas, imaginem se a história da gravidez por um acaso não acontecesse!? Como iria explicar as unhas todas cheias de manchas brancas?
Os dias passavam e a angústia aumentava. Não tivera coragem de contar para a amiga. Houve momentos em que o pensamento criava asas e via-se frente a uma tragédia social. A barriga da moça crescendo devagar, mas crescendo, e o povo a comentar pelas esquinas. E a menina, só ela, sabedora realmente do segredo. Surpreendia-se por não ver tristeza ou medo no rosto da moça, especialmente quando ele viajava. – E se não retornasse? Como enfrentar a família, os amigos?… – Teria que mudar de cidade e, quem sabe, acabar rapariga nas casas suspeitas em cidades desconhecidas. E se algum conterrâneo a visse por aquelas bandas? Não era de todo impossível. Falava-se muito dessas mulheres que eram o pivô de alguns casamentos desfeitos. Não de todo desfeitos, visto que as pobres esposas não podiam sobreviver sem os maridos traidores. Graças a Deus, não era o caso da mãe da menina, que tinha um marido exemplar. Era bem verdade que, quando solteiro, seu pai andara por “aquelas casas” e uma das mulheres se engraçou dele. Mas, tão logo se casou, ele não quis mais saber da amante, que foi embora da cidade e só retornou muitos anos depois, quando a mãe da menina estava grávida. O pai da garota não quis saber da “cuja”, mas, por medida de precaução, a mãe fez promessa: se a rapariga fosse embora, ela dava à filha o nome da Santa de sua devoção. Alcançou a graça e a cumpriu. Mas esta é outra história.
A preocupação da menina, naquele momento, era com o “beijo fatal” que, afinal, não passou de um simples beijo.
Pois é, o primeiro beijo da menina foi aos quinze anos de idade, mas a pobrezinha ficou tão assustada que nem o curtiu. E mais uma vez, esta seria outra história.
Como já dizia o grande Machado de Assis: “A mitologia deu-nos um Baco gerado na coxa de Júpiter; e da cabeça deste fez nascer Minerva armada”.
Felizmente, a realidade, por ser outra, não trouxe nenhum transtorno para a moça e o motorista.
Nota: Coletânea “Alvorecer da ALEARTES 2004”, pag. 38.