MARIA CONTENTE
Josélia Costandrade
Todos a chamavam de Maria Contente, em razão talvez dos impressionantes vestidos exclusivos, de intenso colorido, que usava e confeccionados por ela mesma. Quem sabe, sua personalidade alegre, exuberante, expressando certo encantamento diante da vida, lhe valera tal designação. Morava um tanto longe do centro da pequena cidade, onde aparecia raras vezes, apenas para comprar os materiais indispensáveis ao seu trabalho: cadernos, lápis e borracha, tecidos, fios de tecelagem, linhas de costura e bordado. Aos sábados, quando era realizada a feira local, levava para vender, as redes que tecia artesanalmente e os bordados. Era assídua nas festas religiosas e nas campanhas eleitorais, pois gostava muito de política, sendo eleitora fiel e atenta.
Sua presença sempre despertava atenção e curiosidade, especialmente, por parte das crianças, algumas das quais a viam com indisfarçável receio.
Observada, comentada, Maria Contente era apontada por causa de seus surpreendentes vestidos, inteiramente costurados à mão, de uma forma bastante elaborada, com retalhos de padrões, cores e texturas diferentes, ligados entre si pela costura invisível e enriquecidos com bordados multicoloridos, em pontos diversificados, adições de canutilhos, vidrilhos e paetês, acrescidas com aplicações de rendas e crochê, Em meio a toda aquela espécie de pintura têxtil, ela bordava os nomes das pessoas às quais “queria bem”, de acordo com sua expressiva maneira de falar.
Seria ela, uma cigana desgarrada de sua tribo, igual a tantas que perambulavam pelo Nordeste? Os olhos verdes, a pele tendendo a um ligeiro moreno, as tranças que lhe alcançavam a cintura… Ou, poderia ser descendente de uma das moças paraguaias, que chegaram até aquelas paragens, na guarnição vencedora e exausta, de oficiais brasileiros, como espólio, após a guerra da tríplice aliança.
Cigana, paraguaia, mistério incluso, em sua peculiar maneira de trajar-se, Maria Contente precedera, de muitos anos o movimento “hippie” e a predileção de seus seguidores pelas indumentárias indianas. Ela, que jamais ouvira falar da obra de Kandinsky, através de sua forte intuição refletia, com tecido e linha, a mesma concepção estética do pintor russo, pertencente à chamada “escola de Paris”. Isso poderia parecer uma blasfêmia, mas não é. Quem é capaz de frear a imaginação criativa de alguém?
Na casinha da Várzea Grande, ao lado de imenso tear, o oratório com os santos de devoção, cadernos, onde copiava as suas poesias prediletas, livros e linhas. O jardim exibia as plantas ornamentais, roseiras, zínias, bredos, espirradeiras, enquanto o quintal acolhia árvores frutíferas e uma pequena horta de manjericão, alecrim, coentro. Havia uma azáfama permanente, no cuidado das plantas, na tecelagem das redes, na intrincada criação dos bordados. Mas, a hora dedicada à leitura dos sonetos era sagrada. Sempre ao cair da tarde, quando o sol, como se fosse um pintor, iniciava uma nova tela sobre o horizonte, juntando tintas mais fortes, às esmaecidas tonalidades, até encher o espaço com muitas sombras. Sob o impacto daquele cenário, Maria Contente sentia uma espécie de saudade, estranha, indefinida. O aroma das roseiras penetrava pelas janelas. Deitada na rede, folheava alguns livros e escolhia então os sonetos, que podiam ser de Castro Alves, de Olavo Bilac ou Gonçalves Dias… As rimas perfeitas produziam uma inconfundível melodia, aguçando a sensibilidade da leitora, deixando os seus sentimentos fluir livremente. As palavras transformavam-se em formas vívidas, em cores vibrantes, aos olhos de Maria Contente. Brilhavam fortemente, pulsavam e, delas surgia a inspiração para seu trabalho.
*