A ESCULTORA E O POETA OVÍDIO – Conto – Rita de Cássia Amorim Andrade (Ritissima-Textos)

Postado por Rita de Cássia ligado abr 8, 2013 em Ritissima-Textos | 0 Comentários

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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A ESCULTORA E O POETA OVÍDIO

“Dotado de mais alta inteligência,

Ente, que a todos legislar pudesse:

Eis o homem nasce, e…

…O Fator conferiu sublime rosto,

Erguido para o céu lhe deu que olhasse.”

(Ovídio – METAMORFOSES – excertos traduzidos por Bocage)

Rita de Cássia Amorim Andrade

Queria esculpir uma estatua que denotasse a perfeição masculina. O tempo passava, as bonecas de argila depositadas nos tanques de água iam apodrecendo seus panos.

Uma noite, com os olhos secos, quis um sonho revelador, mas os sonhos só se manifestariam com o sono. Tentou um sonho acordado. Fechou os olhos e pensou nos gregos. Em seguida, nos anjos, muitos vieram a terra anunciar gravidezes; a judia Maria, que concebeu sem pecado; outra, do velho testamento, engravidada aos noventa anos! Manteve os olhos fechados, pronta para uma gravidez mental.

Um toque na porta. Ovídio! Estivera pensando nos gregos, mas Ovídio era latino! Clama-lhe ajuda.

Ovídio convoca a deusa Vênus. Esta lhe sussurra um segredo. Ele conduz a escultora a uma montanha. Ao atingirem o topo o dia já desponta e os primeiros raios de sol esparramam-se pela encosta. Aves de rapina fazem voos rasantes e fascinam a mulher. O poeta das reflexões psicológicas e emocionais desperta-a do devaneio. Um filete de água escorre de uma fissura, na rocha. Ele lhe sugere lavar as mãos ali. A escultora introduz os dedos mais e mais até tocar em uma massa maleável. A sensação tátil lhe agrada. Retira das profundezas pequenas porções de barro vermelho. Acaricia a massa e, etapa por etapa, modela uma imagem. Prossegue até o formato humano.

A cabeça pende para a direita. Cabelos levemente ondeados. Testa lisa. Olhos parecem ver além do visível. Zigomáticos angulam-lhe a face. Nariz afilado. Boca carnuda a se oferecer a um ósculo. Pomo-de-adão masculiniza o semblante. O corpo longilíneo expõe os músculos, do peitoral ao sóleo, em completa harmonia. A glande peniana repousa sobre dois sacos. Surge o homem ainda sem alma. Embevecida, com a suprema beleza da estátua, a escultora pede a Ovídio que dê vida àquele barro. Ovídio, mais uma vez, recorre a Vênus.

A deusa examina a obra. Observa-lhe o olhar, há uma centelha na pupila, um ponto luzente submerso na concavidade ocular. Alonga a vista ao infinito tubuloso e vê o tempo se aproximar pela luz da vida. Seria o senhor dos deuses ali se infiltrando?! Hesita por um instante.

Revolve ao corpo, há uma faculdade de alma, uma sensibilidade erótica proveniente da imagem. Concorda em dar-lhe vida.

Eis o homem metamorfizado.

Fonte: Participação de Rita de Cássia Amorim Andrade na coletânea TANTAS PALAVRAS.

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