A MENINA E O TEMPO – por Rita de Cássia Amorim Andrade (categoria: Ritissima-Textos)

Postado por Rita de Cássia ligado jul 1, 2014 em Ritissima-Textos | 0 Comentários


A MENINA E O TEMPO


Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
(Mário de Sá-Carneiro – Dispersão)

 


O pátio da escola estava lotado naquele horário. O recreio tinha de tudo, lanches,

jogos de peteca, paqueras, meninos exibicionistas, meninas a cochichar. Depois de

aulas maçantes, seria justo aquele rufar de saias pregueadas.


A menina magra de carne e músculo, de face pálida encoberta por volumosos

cabelos avermelhados que iam até a cintura, sentou-se em um banco de cimento, a

balançar, nervosa, as pernas. Acabava de vê-lo sentar-se no banco próximo.

Olhou-o de revés. Odiou-o! Odiava aquele garoto letárgico, branco que nem uma

vela, sempre só, a escrever, não sabia o quê. Até no intervalo de aula, ali estava

ele, papel na mão e lápis entre os dentes, a matutar.


— Por que me olha assim? — gritou ela para ele — não vê que o detesto!…


Nem um som saía da boca do menino. Seu único gesto foi abaixar a vista,

humilhado. Ela fez uma pausa, esperava que ele reagisse. Mas não, o menino ouvia

os insultos, mudo. Aquele silêncio irritava-a ainda mais. Ele, nada dizia, só a amava

— que adivinhasse os seus poemas, não eram para ela? — Por que não lhe alcançava

o coração?!


Súbito, a menina se levanta violenta, enorme, rumo a ele. O jovem estremece.

Sente o palpitar de todo o corpo, fremente. Os papéis rolam pelo chão. Ele

também. Ela o arrasta pelo cimento bruto, arranha-lhe a pele, endoidecida. Todos

correm para vaiá-lo, forma-se um círculo de rostos descomunais. Ela lhe soca o

nariz e o sangue escorre. O menino sabe que poderia esmagá-la se quisesse, mas

não quer. Sente prazer naquela agressão. A dor vai transmutando-se numa sensação

desconhecida. De repente, um choque elétrico percorre-lhe o corpo. Sente que

alguma coisa escorre pelas calças e a dor some. Ela também.


— Para onde ela foi?


………………………………………………..


— Por que você está aqui, não me deu meia hora?


— Exatamente, meia hora…


— Não! Foram apenas alguns segundos.


— Meia hora…


— Não e não. Quero ficar mais tempo. Quero que ele me perdoe. Saiu tudo errado.

Quero beijá-lo…


— Seu tempo acabou.


— Quero ficar com ele para sempre.


— Não temos permissão para mudar o destino das pessoas. Só lhe foi concedida

meia hora.


— Não! Vou ficar, já disse.


— Você teve o seu tempo, agora não podemos demorar, sob pena de recebermos o

castigo.


— E aquela história de livre arbítrio…, não posso escolher?


— Você desperdiçou seu tempo, aguerrida!…


— Por quê! Ele é meu, só…


…………………………………………………


O despertador tiniu. O garoto se espreguiçou. Retirou o lençol que lhe prendia as

pernas e correu para o banheiro, descalço. Tinha poucos minutos para descer a

escada e fazer o desjejum. Escovou os dentes em frente ao espelho. Parou

assustado! Uma cena veio-lhe à mente. Como ela sumira?! Por certo teria escapado

por entre as pernas dos colegas. E os arranhões?!… A pele estava limpa. E o sangue

do nariz?!… Meteu a mão na calça do pijama e apalpou o órgão. Havia sim, uma

coisa gosmenta. Teria sonhado? Lembrava-se dela. Ah! Da próxima vez iria sentir o

lamber das línguas na boca daquela menina.


…………………………………………………


— Vou vê-lo novamente?


— Você sabe que não… Por que insiste em perguntar?


— Eu nunca mais vou esquecê-lo.


— Vai sim, ou melhor, não vai mais se lembrar dele.


…………………………………………………


Ontem, lembrei-me de um passado, mas não sei de que…

 

 

 


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