A MENINA E O TEMPO
Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
(Mário de Sá-Carneiro – Dispersão)
O pátio da escola estava lotado naquele horário. O recreio tinha de tudo, lanches,
jogos de peteca, paqueras, meninos exibicionistas, meninas a cochichar. Depois de
aulas maçantes, seria justo aquele rufar de saias pregueadas.
A menina magra de carne e músculo, de face pálida encoberta por volumosos
cabelos avermelhados que iam até a cintura, sentou-se em um banco de cimento, a
balançar, nervosa, as pernas. Acabava de vê-lo sentar-se no banco próximo.
Olhou-o de revés. Odiou-o! Odiava aquele garoto letárgico, branco que nem uma
vela, sempre só, a escrever, não sabia o quê. Até no intervalo de aula, ali estava
ele, papel na mão e lápis entre os dentes, a matutar.
— Por que me olha assim? — gritou ela para ele — não vê que o detesto!…
Nem um som saía da boca do menino. Seu único gesto foi abaixar a vista,
humilhado. Ela fez uma pausa, esperava que ele reagisse. Mas não, o menino ouvia
os insultos, mudo. Aquele silêncio irritava-a ainda mais. Ele, nada dizia, só a amava
— que adivinhasse os seus poemas, não eram para ela? — Por que não lhe alcançava
o coração?!
Súbito, a menina se levanta violenta, enorme, rumo a ele. O jovem estremece.
Sente o palpitar de todo o corpo, fremente. Os papéis rolam pelo chão. Ele
também. Ela o arrasta pelo cimento bruto, arranha-lhe a pele, endoidecida. Todos
correm para vaiá-lo, forma-se um círculo de rostos descomunais. Ela lhe soca o
nariz e o sangue escorre. O menino sabe que poderia esmagá-la se quisesse, mas
não quer. Sente prazer naquela agressão. A dor vai transmutando-se numa sensação
desconhecida. De repente, um choque elétrico percorre-lhe o corpo. Sente que
alguma coisa escorre pelas calças e a dor some. Ela também.
— Para onde ela foi?
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— Por que você está aqui, não me deu meia hora?
— Exatamente, meia hora…
— Não! Foram apenas alguns segundos.
— Meia hora…
— Não e não. Quero ficar mais tempo. Quero que ele me perdoe. Saiu tudo errado.
Quero beijá-lo…
— Seu tempo acabou.
— Quero ficar com ele para sempre.
— Não temos permissão para mudar o destino das pessoas. Só lhe foi concedida
meia hora.
— Não! Vou ficar, já disse.
— Você teve o seu tempo, agora não podemos demorar, sob pena de recebermos o
castigo.
— E aquela história de livre arbítrio…, não posso escolher?
— Você desperdiçou seu tempo, aguerrida!…
— Por quê! Ele é meu, só…
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O despertador tiniu. O garoto se espreguiçou. Retirou o lençol que lhe prendia as
pernas e correu para o banheiro, descalço. Tinha poucos minutos para descer a
escada e fazer o desjejum. Escovou os dentes em frente ao espelho. Parou
assustado! Uma cena veio-lhe à mente. Como ela sumira?! Por certo teria escapado
por entre as pernas dos colegas. E os arranhões?!… A pele estava limpa. E o sangue
do nariz?!… Meteu a mão na calça do pijama e apalpou o órgão. Havia sim, uma
coisa gosmenta. Teria sonhado? Lembrava-se dela. Ah! Da próxima vez iria sentir o
lamber das línguas na boca daquela menina.
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— Vou vê-lo novamente?
— Você sabe que não… Por que insiste em perguntar?
— Eu nunca mais vou esquecê-lo.
— Vai sim, ou melhor, não vai mais se lembrar dele.
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Ontem, lembrei-me de um passado, mas não sei de que…