Escritores de A a Z > SÉRGIO SANT’ANNA
Nota: Sérgio Sant’Anna (RJ) estará no SALIPI-2012 (Teresina), como palestrante: “A minha própria escrita”, no dia 15 de junho de 2012, às 19h.
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Biografia
Sérgio Andrade Sant’Anna e Silva (Rio de Janeiro RJ 1941). Contista, romancista, poeta e professor. Muda-se para Belo Horizonte, em 1959, e ingressa na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, formando-se em 1966. Cursa pós-graduação, entre 1967 e 1968, no Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Paris. À época, viaja também a Praga, República Tcheca, testemunhando os eventos deram fim à “Primavera de Praga”, movimento que restituía liberdades democráticas em pleno regime soviético. Estreia na ficção no ano seguinte, com uma pequena edição, paga com a ajuda do pai, do livro de contos O Sobrevivente, com o qual ganha bolsa para participar do International Writing Program, da Universidade de Iowa, Estados Unidos. Volta a viver no Rio de Janeiro em 1977, ano em que integra o corpo docente da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), permanecendo até 1990. A partir de então, passa a se dedicar exclusivamente à literatura, atuando ainda como colunista do jornal O Dia e colaborando para diversos veículos da imprensa, como a revista Cult e os cadernos literários dos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Em 2008, depois de 40 anos, volta a Praga, para escrever O Livro de Praga: Narrativas de Amor e Arte, lançado em 2011, que integra o projeto Amores Expressos, criado pela editora Companhia das Letras.
Comentário crítico
O texto que volta sobre si mesmo, questionando as possibilidades da literatura, é uma das marcas de Sérgio Sant’Anna. Essa característica determina três fatores fundamentais da obra do autor: a tendência à experimentação formal, o diálogo com diferentes linguagens artísticas e a mescla de gêneros narrativos.
Tanto no conto como no romance, a posição do narrador é frequentemente escancarada. Se em primeira pessoa, o ponto de vista revela sua fragilidade, assumindo-se como parcial e limitado. Se em terceira, denuncia seu próprio caráter arbitrário, em um jogo determinado pela consciência da impossibilidade de narrar.
Confissões de Ralfo: uma Autobiografia Imaginária (1975), o primeiro romance de Sant’Anna, é exemplar quanto à simulação de uma aparente liberdade narrativa. A atmosfera sugerida pelo subtítulo confere ao narrador-protagonista a licença para ignorar os limites entre a declarada ficção e o que se oferece como sua biografia: “Que alívio, portanto, pode trazer para mim o fato de que tais coisas aconteceram apenas ficcionalmente comigo?”.
Nos fragmentos que compõem seu discurso, Ralfo se apresenta em diferentes versões ou personalidades: repórter, herói, mágico, ator, escritor, em clara tendência ao escapismo. As razões para que tente fugir da realidade aparecem em chave irônica ou paródica e tornam-se patentes no capítulo em que narra a tortura a que foi submetido. A cena, armada para retratar o interrogatório de um preso político, sugere, ao adotar o nonsense, o recuo da plausibilidade diante de uma realidade violenta. As perguntas do interrogador são atípicas: “E qual era a profissão de Dostoievski? [...] Então nos diga por isso mesmo, o que aconteceu a 13 de outubro de 1915″.
Também se confundem os diferentes níveis de autoria demarcados no romance. Ralfo, o protagonista, assina o prólogo e o epílogo a sua autobiografia. O livro se encerra com uma nota final de Sérgio Sant’Anna – que, entretanto, pertence também ao âmbito ficcional, não correspondendo ao autor de fato, pois afirma: “Entre as várias incoerências deste livro está a de ser guardado ou publicado, uma vez que todas as suas cópias foram supostamente destruídas, no capítulo a que se deu o nome de ‘Literatura’”.
A frequente sobreposição dos diferentes níveis discursivos chama atenção, assim, para o falseamento próprio da escrita. Estão em jogo sempre as representações da realidade, jamais a realidade sem mediações, fato ressaltado pelo discurso metalinguístico.
No conto-título de Notas de Manfredo Rangel, Repórter (1973), o narrador apresenta observações escritas a respeito de Kramer, a quem acompanha por acreditar se tratar de “um possível futuro presidente da República”. A trajetória do político, marcada por oscilações em seu posicionamento e na relação estabelecida com o poder dominante – o que inclusive o leva à prisão e à tortura -, é apresentada em fragmentos, em um formato que dispensa a necessidade de qualquer causalidade. Com o procedimento, o jornalista se isenta da responsabilidade fundamental de seu ofício – compreender e interpretar os acontecimentos -, ao mesmo tempo em que denuncia, pela impossibilidade da visão coesa, o caráter brutal e arbitrário dos eventos políticos brasileiros.
A tendência argumentativa está em textos que procuram revelar outra arbitrariedade: a do próprio discurso – caso sobretudo das narrativas em terceira pessoa. No conto “A mulher nua” (O Voo da Madrugada – 2003), a alta recorrência de conectivos e o uso ostensivo de clichês como “é preciso apontar que” e “tornaremos a isso mais adiante” parodiam a dissertação da crítica de arte: não sem ironia, demonstra-se a falaciosa objetividade das conclusões interpretativas.
Trata-se, afinal, de tema caro ao autor – e que é responsável por colocar à prova o depoimento do narrador do romance Um Crime Delicado (1997) ou determinará a estrutura do conto “O duelo” (A Senhorita Simpson – 1989). No primeiro, o protagonista, um crítico de teatro, torna-se vítima de uma obra de arte; já o escritor, na narrativa breve, oprimido pelas relações de mercado implicadas na feitura de um livro, faz de sua própria escritura uma colagem de best-sellers costurada por clichês cinematográficos ou televisivos.
A impossibilidade de escapar às determinações mercadológicas, as saídas pouco realistas de Ralfo e a visão fragmentada de Rangel apontam para o desencanto diante do mundo: o que pode o sujeito diante de condições objetivas que o oprimem? Mesmo as tentativas de atribuir certo heroísmo ao anti-herói estão condenadas ao fracasso. Tal como o miserável limpador de vidros tornado celebridade involuntária por pedestres que fantasiavam uma cena de suicídio em “Um discurso sobre o Método”, as personagens têm sua implacável massificação reposta e acentuada justamente no momento em que se procura individualizá-las ou elevá-las.
Fonte: Reprodução: www.itaucultural.org.br
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